Brasil e Croácia, primeiro jogo da Copa do Mundo de 2014-06-12 Foto:copa2014.gov.br - CC BY 3.0 (https://creativecommons.org/licenses/by/3.0/deed.pt)
  • Artigo de Marcos Lima, historiador mestre e doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas. Atualmente é PEB II efetivo vinculado à Secretaria Estadual de Educação de São Paulo. Pesquisador Colaborador junto ao Departamento de Filosofia e História da Educação, Faculdade de Educação da UNICAMP, Grupo de Estudos e Pesquisas HISTEDBR.

Na área vip do estádio que sediava o primeiro jogo da Copa do Mundo de 2014, Luciano Huck, juntamente com vários outros artistas da Rede Globo, além de palavrões e ofensas à então presidenta Dilma Rousseff, puxava o coro “fora Dilma”, preludiando o Golpe que colocaria fim ao seu governo. O estádio lotado vestia a camiseta verde amarela da seleção brasileira de futebol, que logo se tornaria o símbolo de uma direita que se dizia verdadeiramente “patriota”. Não é nenhuma novidade a utilização de símbolos nacionais para se elevar a autoestima da população em tempos de crise, como se tais símbolos flutuassem sobre os interesses corporativos das classes e frações de classe. Em 2013, as ruas se tornaram palco de manifestações com interesses diversos, havendo desde demandas pela redução da tarifa de ônibus, combate à corrupção, não faltando aqueles que, alegando temer a “bolchevização” da sociedade brasileira, desfilavam com as mesmas tradicionais camisetas verde amarelas da seleção brasileira de futebol. Como vemos nos livros de história, parte da população brasileira, trajando as cores típicas da bandeira, entoava em 1970, durante a Copa do Mundo o hino: “Setenta milhões em ação, pra frente Brasil, do meu coração!” Isso no contexto da ditadura militar, em que a abertura do país para os interesses norte-americanos foi realizada a fórceps, transvestida de uma “Aliança para o progresso”.

Destaca-se nos eventos da atual crise da democracia brasileira a manipulação emocional das massas, fenômeno caro ao processo de fascistização clássico ocorrido na Europa no período entre a Primeira e a Segunda Guerra mundial. Em tempos de crise, as classes dominantes desenvolvem estratégias como o “sequestro da ira” popular, apresentando alternativas de centralização do poder diante da desmoralização das formas políticas tradicionais, como os partidos, sindicatos etc. Destaca-se a crença em líderes carismáticos ou instituições que, aparentemente, se colocariam acima da luta de classes. Outro não foi o resultado do Golpe de 2016, que pôs fim ao governo Dilma Rousseff, pavimentando o caminho para o Bolsonarismo, que, não por acaso, apresenta-se como representante máximo do nacionalismo brasileiro. De forma mais escancarada ainda do que no contexto da ditadura, os novos nacionalistas abrem as portas do país para o capital monopólico internacional explorar livremente os recursos naturais e a força de trabalho nacional, destacando-se nesse intento a implementação das contrarreformas da previdenciária e trabalhista e o novo marco temporal que legitimará, caso seja aprovado, o genocídio dos povos originários causado pela expansão do agronegócio.

Para além do “verdeamarelismo” reiterado de “quatro em quatro anos”, durantes os períodos eleitorais, conforme Marilena Chaui, o mito fundador da nação brasileira se expressa na crença na unidade, na identidade, na indivisibilidade da nação e do povo brasileiro. Quando a divisão social e política se evidencia, ela se dá sob a forma dos “amigos e dos inimigos da nação”. De maneira contraditória, a fome, o massacre da população negra nos bairros de periferia e dos povos indígenas em áreas de reserva convivem com a imagem de unidade fraterna narrada em verso e prosa. As raízes do mito fundador remontam ao ano de 1500, de lá para cá desenvolve-se uma verdadeira pedagogia que nos forma enquanto um povo “híbrido”, criado a partir da colonização, apoiado em um outro mito, o “mito da inferioridade de origem”, nas palavras de Miguel Arroyo. Reitera-se a cada geração a ideia de que frações subalternas da sociedade brasileira como indígenas, negros, quilombolas etc., seriam por origem inferiores, portanto, destinados à eterna obediência.

Ainda que historiadores como José Murilo de Carvalho enxerguem uma certa astúcia popular no contexto de transição à República, entendemos que movimentos históricos como esse trazem a marca das revoluções passivas, ou seja, transições pelo alto sem a participação das camadas populares, fadadas a não se credenciarem como cidadãos de primeira categoria, partícipes de um projeto de nação que, longe de concluído, permanece inacabado, devido as profundas contradições estruturais de nossa sociedade. Podemos concluir, portanto, que nação e nacionalismo à brasileira não passam de ideologias funcionais à manutenção do mito da inferioridade. 

À guisa de conclusão, resta-nos a proposição de um projeto nacional popular para a sociedade brasileira, fundamentado na participação ativa dos indivíduos e suas diferentes formas de representação. O que pressupõe desde a mais tenra idade a formação intelectual e moral dos indivíduos para a vida pública, por meio da participação no desenvolvimento e execução de projetos em diferentes áreas, na economia, burocracia política do Estado, passando pela educação, entendida como educação popular, articulando a organização política e a transmissão do saber necessário para que os indivíduos desenvolvam a capacidade dirigente para a vida em sociedade. Um passo significativo para a organização das massas com vistas à superação da “subalternidade programada” deve ser dado com a desconstrução dos mitos apontados anteriormente, o mito fundador da nação e o mito da inferioridade popular, sustentáculos ideológicos de uma formação social excludente, que reitera a cada nova geração as condições da subalternidade das camadas populares, mantendo inacabado o projeto de construção de uma nação verdadeiramente soberana, capaz de viver em diálogo solidário com outros povos e nações. O que implica na inserção do povo-nação na história, por meio do reconhecimento das artimanhas do processo de colonização e pós-colonização, assim como, das diferentes estratégias de transição histórica que tem alterado superficialmente as condições materiais de existência, inviabilizando a socialização do poder econômico, político e simbólico. Só assim poderemos falar numa consciência nacional-popular, capaz de superar os limites estreitos do nacionalismo, que bradando-se como defensor dos interesses nacionais, reitera constantemente os fundamentos externos do congelamento do processo descolonização, denunciado sem tréguas por Florestan Fernandes e outros intelectuais militantes, esses sim tradutores dos anseios de libertação do povo brasileiro. 

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