*Felipe Campos, estudante

Os últimos dias foram marcados pelo tremor das notícias aterrorizantes e inacreditáveis – menos para quem já morava no Afeganistão – sobre a tomada do Talibã ao país. De forma bem resumida, o grupo extremista do Talibã impõe aos cidadãos a lei Sharia, isto é, uma interpretação mais rigorosa do sistema jurídico do Islã baseado em preceitos do Alcorão, o que ocasionou uma revolta e um sentimento de pavor em todo o mundo – e realmente deveria (e ainda deve). O que foi visto nessas últimas semanas foi uma “volta no tempo”, na qual todo o mundo regrediu 20 anos juntos, perdendo conquistas e avanços fundamentais para os preceitos de direitos humanos que pretendemos – ou ao menos deveríamos – construir. 

No entanto, chamo a atenção para uma temática que está interligada, embora de uma forma totalmente diferente e em situações extremamente opostas, tanto ao Talibã quanto a política brasileira: a interferência, integral ou parcial, respectivamente, da Igreja no Estado. Nós vivemos em um país laico, isto é, existe, supostamente, o respeito a todas as religiões e crenças, não podendo, logo, a imposição de uma religião em cima de determinados grupos, como também, a criação de leis ou atos que interfiram na sociedade como um todo serem construídas em cima de base religiosa. Isso não quer dizer que não possa haver religiões e, sim, que nenhuma pode estar acima das outras ou criando algum tipo de sistema jurídico/legislativo. Porém, não é incomum ver discursos de diversos políticos em votações de criação ou ajustes de leis com a citação de fundamento religioso – de forma autoritária e conservadora –, sobretudo do cristianismo que compõe 86, 6% da população brasileira, de acordo com o IBGE, e isso cria a reflexão, será que estaríamos tão longe do Talibã se repentinamente políticos ligados a um cristianismo mais radical assumissem o país? 

Talvez essa pergunta soe até desrespeitosa para alguns cristãos que estão lendo esse artigo e pensando “isso não é o que minha religião apresenta”, mas veja bem, trago trechos de políticos brasileiros baseados em preceitos cristãos convergentes: 

Mas dentro da minha concepção cristã, a mulher, sim, no casamento é submissa ao homem e isso é uma questão de fé” – fala de Damares Alves, Ministra da Mulher e dos Direitos Humanos em audiência pública na Comissão de Defesa de Direitos das Mulheres na Câmara, em 2019. 

“Meu Jesus não foi feito pra ser enfeite de pescoço de homossexual. Nem de pederasta, nem de lésbica” – fala do até então pastor Marco Feliciano, em 1993, que virou Deputado em 2010. 

Deus acima de tudo. Não tem essa historinha de Estado laico não. O Estado é cristão e a minoria que for contra que se mude. As minorias têm que se curvar para as maiorias” – fala do até então Deputado Federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), em 2017, e hoje, presidente da República. Em 2020, ele complementou em seu Twitter afirmando, dessa vez, que o país “é um Estado laico, mas o seu governo é um governo cristão”. 

O Brasil carrega, desde a sua formação como Estado, práticas (infelizes) feitas em nome da religião. O genocídio aos povos originários e/ou catequização, a escravidão que deixou de herança a intolerância religiosa às religiões de matrizes africanas, e principalmente, desde a República, a eleição de pessoas ligadas, intimamente, a vínculos religiosos – o que nem sempre é tão radicalizado, mas ainda sim deve ser feito com cautela, como afirma a socióloga Christina Viral, “não é um problema que essa religião seja usada na vida pública mas, o modo como ela vem sendo distorcida por determinadas pessoas no contexto brasileiro, principalmente no que diz respeito a temas como acesso ou ampliação de direitos, é em si problemática”. 

Algumas pessoas podem pensar, no entanto, já que a maioria do país seja cristã, leis que estejam com esse ideal estariam de acordo com a democracia, uma vez que atingiria o que a “maioria” pensa. Mas, mesmo que 86,6% da população seja cristã, será que toda essa porcentagem tem um pensamento igual? Não creio que podemos dizer que falas tão desumanas como do Deputado Marco Feliciano representem todos os cristãos brasileiros. Não só não creio, como posso rebater usando a fala do Pastor Henrique Vieira, que já foi vereador e falou (no programa Papo de Segunda – “Fé e má fé: religião na política”, do canal GNT): “o religioso pode adentrar a política [e também que usava sua religião para tornar o Brasil um país mais justo], mas, ainda sim, entendo a importância do respeito às crenças diferentes e o mais importante que a minha tarefa como cristão não era tornar o Brasil um país cristão e sim mais justo, com mais respeito e diálogo”. 

Entretanto, o que vem ganhando forças recentemente no Brasil, infelizmente, é com toda certeza a ala mais conservadora do cristianismo, ressaltando a importância, assim, que toda religião não pode ser implementada integralmente ou fundamentada no contexto político. Como o Pastor Vieira e a socióloga Viral dizem: não é problemático a participação da crença em si, mas sim o momento quando ela começa a revelar lados mais autoritários, afinal sempre existirão vertentes mais radicais e não é admissível que elas possam ascender, até porque, depois de tantas conquistas, regredirmos para um Estado teocrático novamente. Se dermos brechas para que religiosos mais radicais assumam o país, com qualquer religião, é retroceder para um passado extremamente obscuro e instável. 

É importante que tenhamos o exercício de olhar para situações absurdas como o que está acontecendo no Afeganistão agora e, pensar na necessidade da separação do Estado e Igreja. Contudo, não podemos achar que é somente religião “x” ou “y” que causaria problema assumindo uma nação pois, todo Estado conterá os mais diversos pensamentos e ideologias, é preciso que haja diálogo, com respeito, entre essas diferenças e não imposição do que é o correto, baseado em uma crença que é algo unilateral e decisivo, isto é, não contém participação, debate, jogo de interesses, é somente uma decisão baseada em algo que um grupo acredita imposto a todas as pessoas, independente de elas estarem de acordo com isso ou não. 

Um exercício para o próximo ano (ano eleitoral, com pessoas que irão compor o Legislativo e o Executivo): veja quantas falas serão usadas em propagandas eleitorais alinhando-se à igreja na clara tentativa de abocanhar votos. Também procure ver nas discussões já presentes na Câmara quantas vezes usam Deus como base para a votação de algum projeto, e ainda, perceberem, sobretudo para com o cristianismo, quantas atrocidades e desrespeitos são feitas às minorias sociais com base na religião, o que mancha o dogma da Igreja de “espalhar o amor de Cristo”, na verdade, não representando – ou ao menos não deveria – o que todo cristão brasileiro é. 

Finalizo, portanto, esse texto com a certeza de ter criado um artigo polêmico, embora necessário. Momentos como a crise que está acontecendo no Afeganistão foram sendo construídos gradativamente com o fundamento de uma crença e sua mistura no Estado, o que nos mostra, então, a importância de lutarmos por uma nação onde toda religião seja respeitada, mas que ainda sim ela se afaste da política no que diz respeito a imposição pois, somente assim uma democracia pode ser mantida. 

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One thought on “Talibã e a Política Brasileira: reflexões sobre o radicalismo religioso”

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