• Artigo de Sandro Dias

“E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de mandioca sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela moqueca, pelo vatapá e pelo caruru; a couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o pirão de fubá ao pão de rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu aroma quente, Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não tardou a fumar também com os amigos.” 

O Cortiço, Aluísio de Azevedo

A história alimentar brasileira é a história de um sem-número de adaptações e entrecruzamentos culturais de todos os povos, nativos ou que para cá vieram, desde a nada amistosa chegada dos portugueses que resultou na escravização dos anfitriões indígenas e, posteriormente de indivíduos vindos d’África, também escravizados. Inicialmente, nos aponta Câmara Cascudo, foi desse tripé inicial: o cardápio indígena, a dieta africana e a ementa portuguesa é que se formou, em grande medida, a alimentação brasílica. 

Costuma-se chamar de “típicos” produtos como a feijoada, prato síntese da nossa brasilidade, assim como se considera que a cachaça é nossa bebida nacional, dois dos exemplares que representariam a nossa cultura alimentar. Já dizia Brillat-Savarin: “diga-me o que comes e te direi quem és”, contudo, a história dos alimentos e bebidas nunca é simples.

Da mistura do “feijão gordo” caipira à oferta das primeiras feijoadas servidas em restaurantes do Rio de Janeiro, na virada do século XIX para o Novecentos, com todos os seus “pertences”, há muito valorizados como iguarias na Europa (a feijoada nunca foi produto das senzalas, está mais próxima da sua homônima portuguesa ou do cassoulet francês). Igual complexidade se pode dizer da celebrada cachaça que a partir do conhecimento do alambique (árabe) até os usos da aclimatada cana-de-açúcar, também passou a designar bebida cuja reputação e tradição foi construída no Brasil. Mas afinal, o que compunha a mesa dos “brasileiros” à época da Independência? O que comia o povo e as elites nesse período?

Uma das etapas desse processo, foi a chegada ao Rio de Janeiro das naus portuguesas que traziam, além da família real portuguesa, boa parte da corte lusitana, em razão da agressão napoleônica que provocara monumental deslocamento, a maior transferência de uma corte europeia para outro continente, que foi o traslado de milhares de pessoas de Lisboa para o Rio de Janeiro. Esse evento será o primeiro ato da Independência que testemunharíamos a seguir.

Antes de ser Brasil, a América portuguesa, entre os séculos XVIII e XIX, já possuía significativas frentes de colonização e, sobretudo depois da chegada do príncipe regente D. João VI e toda a família imperial, dada a abertura dos portos acresceu-se um enorme contingente de estrangeiros, inicialmente portugueses e ingleses, mas também de diversas outras nacionalidades, eram comerciantes, pesquisadores naturalistas, investidores, diplomatas, entre outros.

Até esse momento, os conquistadores se beneficiarão das tecnologias da mandioca, herança indígena e um sem-número de produtos, desde a farinha, beijus, pirões, na vertente marítima, bem como da “civilização do milho”, como chamou-a Sérgio Buarque de Holanda, o uso do milho pilado, o fubá, predominante entre os paulistas.

A “gente da terra” que até a chegada dos europeus não conhecia o boi, nem o porco ou a galinha, mas cuja acolhida permitiu o aproveitamento dos produtos nativos, que vão moldar, a partir de adaptações, os hábitos alimentares no Brasil, veja o caso da polenta, por exemplo, hoje absolutamente ligada à imigração italiana, mas que não levava milho originalmente (o pulmentum), pelo simples fato de que sua origem está no Novo Mundo.

Muitos desses produtos provocarão uma verdadeira revolução no Velho Mundo, é o caso do milho, do cacau e, depois, do aclimatado café que vai conquistar europeus em diferentes contextos, basta lembrar das coffee houses inglesas, os cafés parisienses, as cafeterias italianas antes de conquistarem estadunidenses, isso faz lembrar a reprovação inicial de alguns religiosos às “bebidas excitantes”, como o café, o chá e o chocolate.

No Brasil, à época da Independência, embora D. Pedro II não fosse muito afeito a banquetes (contudo, era amante das artes, das ciências e voraz colecionador de cardápios), essas reuniões se proliferavam entre as famílias abastadas, em meio à opulência gerada pela indústria cafeeira, que por meio deles empreendiam a hospitalidade, como base na composição dos alimentos ofertados aos visitantes, conforme a nacionalidade e o gosto da época, em que se misturavam referências de origem europeia e produtos da terra: cafés, chás, licores de frutas e preparações culinárias diversas, como se pode verificar pelo relato de uma viajante inglesa no Brasil:

“(…) a cozinha era um misto de comida francesa e portuguesa. Após a sopa, passou à roda uma travessa de carne magra cozida, fatias de carde de porco gorda e salgada e linguiças. Com este prato serviu-se arroz feito com azeite e verduras frescas. Serviu-se roast beef em atenção aos ingleses, muito pouco assado. Saladas e peixes de várias qualidades foram servidos de maneira singular. As aves e as demais coisas à francesa”

Maria Graham. Diário de uma viagem ao Brasil

Observe que o acento francês não é por acaso, embora o contexto europeu apresentasse grandes transformações a partir da segunda revolução industrial, caracterizada pelo uso da eletricidade, da indústria petroquímica, o uso do telefone, do gramofone, o cinema e o rádio, além dos produtos enlatados. Mesmo com a derrocada do “Antigo Regime” e certa depressão francesa após a Guerra Franco-Prussiana e a Comuna de Paris (1870-1871), a França mostrará ao mundo toda a sua exuberância com a elevação da Torre Eiffel, apresentada em 1899, durante a Exposição Universal francesa.

A proliferação de automóveis, agora equipados com os pneumáticos das indústrias Michelin (que faria nascer o Guide Michelin, em 1900, as famosas estrelas atribuídas aos restaurantes para atestar sua qualidade surgiriam depois, na década de 1920) nas grandes cidades e a redescoberta, no interior, da cozinha regional francesa, fará nascer a cuisine bourgeoise, que se funde ao que chamamos de alta gastronomia francesa (alta cozinha, na realidade), faz evidenciar na França um equipamento novo, o restaurante, palavra derivada do bouillon restaurant, uma espécie de “caldo restaurativo”, daí porque a palavra “restauração” é em bom português, sinônimo de alimentação ou comensalidade.

Fac-símile de livro de cozinha com ilustração do “serviço à russa” que é similar ao serviço à francesa.

A cozinha francesa àquela altura, já era sinônimo de gastronomia refinada e parâmetro cultural para as cortes e famílias abastadas: falava-se francês, se comia e servia-se à francesa, basta interrogar sobre a ascendência francesa de um prato tão comum no Brasil quanto o arroz, feijão com bife e batata frita? 

Há inúmeras preparações corriqueiras no Brasil, como bombas (éclairs), crepes, maionese, risolis, ou até mesmo a coxinha, que pode ter como ascendente a “croquette de poulet” (croquete de frango) já descrita pelo famoso chef francês Antonin Carême, em seu livro, L’Art de la Cuisine Française au XIXème Siécle, que indica inclusive como moldá-los, “en forme de poires” (no formato de peras).

Antigo menu do acervo do Museu de Versalhes, datado de 29/04/1751

Em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro, começam a surgir novos equipamentos como restaurantes e confeitarias que vão desfilar cardápios escritos em francês. Entre as famílias abastadas, ter um cozinheiro francês (em alguns casos, bastava que fosse francês, mesmo sem habilidade de cozinha) era sinônimo de distinção social.

Foto atual da Confeitaria Colombo, fundada em 1894 no Rio de Janeiro
Fac-símile do cardápio mais antigo do brasil (1858) descoberto por Francisco Lellis e André Boccato, no acervo do IHGB e publicado no livro “Os banquetes do Imperador, Editora Senac São Paulo e Editora Boccato, 2013

Entre as camadas populares, trabalhadores urbanos se alimentavam ou se divertiam nos botecos e botequins, com os alimentos que iam se popularizando, eventualmente executados por mãos imigrantes, como salgadinhos, pratos feitos e outros quitutes.

Foto sem data do Ponto Chic, tradicional bar paulistano, famoso pelo sanduíche “Bauru” e pela frequência dos modernistas na década de 1920

A vinda da família real não alterou a dieta popular, mas certamente impactou a mesa das elites desejosas de copiar a estética e as maneiras nobres. O uso de talheres, por exemplo, que até o século XVII era novidade mesmo na Europa, foi incrementado entre as famílias abastadas: pratarias, faianças, porcelanas, o serviço do chá, que chegou aos ingleses pelas mãos da corte portuguesa, tudo isso passa a ser sinônimo de civilidade, urbanidade, sofisticação e poder.

A emancipação do Brasil, cuja efeméride se comemora neste ano, o seu Bicentenário, não cortou os laços com a Europa, mas, ao contrário, somou-se a outros processos imigrantistas, de diversas nacionalidades, como os espanhóis, alemães, italianos, franceses, libaneses, chineses e japoneses que, entre muitos outros, aportaram aqui e nos ajudaram a modificar e a construir novos modelos alimentares, de diferentes expressões, nas várias regiões do país. 

A verdadeira independência se impôs tardiamente, e ainda há de ser construída, seja pela valorização de nossos alimentos da agricultura familiar e do reconhecimento da cozinha brasileira por chefs estrelados, ações que até hoje lutam para minorar a fome que, infelizmente, se agravou nos últimos tempos. Esse é o grito que ecoa para fortalecer a soberania alimentar que é o que nos faz verdadeiramente livres.

  • Sandro Dias é historiador, pós-doutor pela USP, Departamento de Economia, Administração e Sociologia da Esalq, na área de Food Studies; Doutor em Ciências – Ecologia Aplicada em Ambiente e Sociedade e Mestre pela Unicamp, em História e Historiografia Literária.

2 thoughts on “Independência à mesa – alimento e poder no Brasil Imperial”

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