Denominada “Um Brasil para os brasileiros” a exposição realizada no IMS Paulista, entre 25 de setembro de 2021 a 27 de março de 2022, traz as reflexões do antropólogo Hélio Menezes e da historiadora Raquel Barreto acerca da vida da escritora Carolina Maria de Jesus (Sacramento, 1914 — São Paulo,1977). Segundo os organizadores, o título da exposição foi inspirado no nome de um manuscrito da escritora, cuja autoria ela atribuiu ao político e jurista Ruy Barbosa, um homem branco que pertencia às elites dominantes deste país, com seus históricos privilégios de classe, raça e gênero. Carolina, porém, mudou o sentido: seus brasileiros são outros, e, como ela, são negros/as e pobres — sujeitos rasurados da história oficial.

Carolina Maria de Jesus nasceu em Sacramento (MG), em 14 de março de 1914. Ela e sua família percorreram várias cidades do interior de Minas Gerais em busca de trabalho e melhores condições de vida. Da genealogia da autora, sabe-se que sua mãe chamava-se Maria Carolina de Jesus, e seu pai, João Cândido, porém é seu avô, Benedicto José da Silva, conhecido como o Sócrates Africano, a figura marcante para a autora. Ela atribui a ele seu gosto pelas letras e a formação de sua conduta moral. 

Acervo fotográfico do IMS Paulista expõe a escritora Carolina de Jesus em vários momentos de sua vida

Diário de Bitita

Sua vida no vilarejo mineiro inspirou “Um Brasil para os brasileiros”, ficção de caráter memorialístico narrado por uma menina negra, a Bitita — apelido familiar da escritora. O livro a acompanha na infância e no início da juventude, antes da chegada a São Paulo, na década de 1930. A obra apresenta um microcosmo das relações sociais e raciais do pós-abolição, a partir do olhar de Carolina sobre eventos da própria vida, como quando conta ter sido presa, junto com a mãe, pelo fato de portar um livro.

“Um Brasil para os brasileiros”, foi publicado primeiramente na França, em 1982, sob o título “Journal de Bitita”, com o nome da autora alterado para ‘Maria Carolina de Jesus’. No Brasil, o livro saiu em 1986 como “Diário de Bitita”, uma tradução direta do francês, sem nenhuma relação com o título dado pela autora. Entre o livro publicado e os originais, observam-se alterações profundas na estrutura do texto, omissões e até mesmo inclusão de trechos. Uma desautorização discursiva que permitiu que seu texto fosse profundamente modificado, sem seu consentimento.

Carolina evidencia na obra um de seus múltiplos qualitativos: a de interprete literária do país, que disputa uma leitura acerca de nossa formação social e reflete sobre um projeto futuro de país com cidadania plena, liberdade e igualdade racial, com destaque ao direito à educação e à moradia.

Imagina-se que a obra tenha sido escrita ao longo das décadas de 1960 e 1970, em função de duas menções localizadas em entrevistas no referido período, o que leva a crer que este tenha sido um projeto ao qual ela dedicou bastante atenção durante muito tempo.

O livro lançado em 1982 na França com o título “Le Journal de Bitita”. O texto não reproduz na íntegra os originais da autora. Em 1986 o livro é lançado no Brasil, é uma tradução direta do francês, com o título “Diário de Bitita”.

Obras 

Carolina publicou em vida quatro livros: “Quarto de despejo”(1960), “Casa de alvenaria”(1961), “Pedaços da fome”(1963) e “Provérbios”(1963). O sucesso retumbante do primeiro, acompanhado pela publicação quase imediata do segundo, com uma escrita marcante e capaz de fornecer uma verdadeira interpretação do país e do tempo a partir de seu lugar, popularizou-a como uma escritora de diário. Esse fato, porém, ofuscou a diversidade de sua escrita, que incursionou por gêneros como poesia, conto, crônica, texto memorialístico, romance, teatro e outros. O conjunto de sua produção, a maior parte ainda inédita, deixa nítida a existência de um projeto estético-literário e editorial próprios, de uma autora que não parou de escrever, e que fez de tudo para publicar.

Os dois primeiros podem ser lidos como um par: “Quarto de despejo” — composto por diários do período de 1955-1960, os últimos anos vividos na favela do Canindé, em São Paulo — e “Casa de alvenaria” — escrito em Osasco e Santana, lugares de classe média onde residiu, cobrindo os anos de 1960-1961, tornando-se novos cenário da vida da autora best seller.

“Pedaços da fome” revela uma faceta pouco conhecida: a romancista. Maria Clara é a protagonista da história, uma jovem rica que se apaixona por um homem fora de seu ciclo social. O livro originalmente chamava-se “A felizarda”, porém teve seu título e passagens alteradas pelo editor. As interferências editoriais foram constantes em sua trajetória. Já em “Provérbios”, ela cria e compila uma série de pensamentos e ditados populares, baseados em uma ideia de moral que prioriza o trabalho e a honestidade.

Carolina e a imprensa

Entre 1940 a 1963 Carolina adotou uma estratégia de procurar redações de jornais e tentar divulgar seus escritos. Em 1940, conseguiu a primeira reportagem conhecida: “Carolina Maria, poetiza preta”, com destaque para o poema “O colono e o fazendeiro”. Na fotografia que ilustrava o texto, aparecia sorridente, altiva e com os cabelos à mostra, distante da imagem que a popularizaria duas décadas depois. Seguido a mesma estratégia, conseguiu publicações em 1942, 1950 e 1952, entre editoriais irônicos e elogiosos. Data dessa época a publicação do poema “Getúlio Vargas”, em ‘O defensor’, periódico favorável à eleição de Vargas à presidência.

A imprensa cumpriu papel ambivalente na trajetória de Carolina. A imagem de “poetiza preta”se transformou profundamente com as reportagens escritas pelo jornalista Audálio Dantas, em 1958 e 1959. Nelas, o público foi apresentado à personagem da “escritora favelada”, com conotação pejorativa. Essas matérias funcionaram como uma pré-recepção ao livro (“Quarto de despejo” – 1960), definindo-o erroneamente como um documento sociológico. Esse tratamento seria reproduzido em publicações sensacionalistas, que a tornaram objeto de curiosidade, algumas profundamente racistas. Nos EUA, a revista ‘Time’ publicou um artigo (1960) que se preocupou mais em evidenciar sua biografia do que o livro, tecendo comentários sexistas sobre sua vida afetiva. Ainda hoje, apesar do reconhecimento internacional e da importância de sua literatura para o país e o mundo, o tratamento dado pela imprensa oscila entre o exotismo e a excepcionalidade, o classismo e a fascinação.

Quarto de despejo: diário de um país

No livro “Quarto de despejo”, a seleção dos originais para a publicação foi feita pelo jornalista Audálio Dantas, que moldou a percepção sobre o livro mais por um caráter testemunhal do que literário. Isso ofuscou a dimensão lírica e o fato da escritora analisar, por meio de aspectos triviais do cotidiano, a condição e a existência humana. 

Carolina relatava nos diários seu árduo cotidiano, na cidade grande, de catadora de papéis e moradora da favela do Canindé. Descreveu de forma hostil como a favela e seus moradores eram vistos e tratados. Conciliava uma forte crítica às desigualdades econômicas e sociais do país e à conduta corrupta dos políticos, e rejeitava o comportamento de seus vizinhos, a quem considerava por vezes “indisciplinados”.

Apesar do texto manter as características próprias do gênero diário, em que a narradora elabora o que lhe é pessoal e o seu entorno, expressando desejos e opiniões, o diário de Carolina apresenta especificidades que revolucionaram o gênero. A autora incorpora uma voz autoral que é, simultaneamente, individual e coletiva. E posiciona no centro da literatura brasileira a autoria dos subalternizados, trazendo de forma inaugural a perspectiva de uma mulher negra, com as intersecções de raça, gênero, classe e território, e abrindo caminho para dezenas de outras que vieram a lhe suceder.

Em vida, Carolina publicou quatro livros: “Quarto de despejo”,“Casa de alvenaria”,“Pedaços da fome”,“Provérbios”.

Carolina quer morrer

Em uma das inúmeras entrevistas para os jornais vale destacar a entrevista para ‘O Globo’, em 1961, um pouco antes da publicação de seu segundo livro. Na reportagem, o jornalista  José Magalhães Chaves cita “a Cinderela negra, depois de dois anos de êxito, teme voltar a favela”, abordando que “Carolina é uma das poucas faveladas que realizaram seus sonhos. Viu seu primeiro livro publicado, ganhou milhões, teve seu nome e sua foto publicadas nos principais órgãos do País e até no estrangeiro. Mas quando seu segundo livro, “Casa de alvenaria”, está para sair, a ex-favelada teme voltar ao seu ‘quarto de despejo’”. As razões no relatado de Carolina; “O dinheiro acabou. Os milhões de cruzeiros evaporaram-se em viagens, na compra de minha casa de alvenaria, em móveis, contas de hotéis, em coisas que os meus filhos nunca tiveram e, principalmente, emprestado. Minhas crianças, depois de bons jantares, passaram outra vez a um regime de sopa rala, uma vez por dia…”. Revela que seu mundo está se desmoronando; “se algum dia tiver que voltar, se fôr obrigada a morar novamente numa favela, se perder tudo como penso, eu juro que dou cabo na vida!”. E, ainda contou que havia programado uma viagem para assistir ao lançamento de seu livro na Argentina, com passagens compradas, malas prontas e estadias pagas, tudo em vão; “Não vou mais porque não tenho dinheiro para a comida para os meus filhos. Depois que me tornei escritora, estou num inferno, tantos são os aborrecimentos diários, ainda recebo visitas de pessoas que pedem dinheiro, todos os dias. Uns querem comprar casa e pedem duzentos contos emprestados, para dar de entrada. Outros querem que eu pague aluguéis atrasados de suas casas. Se digo-lhes que não tenho mais dinheiro, saem me xingando. Eu quis escrever por um ideal, mas esse ideal me escravizou. E quem é escravo é infeliz. Não sou dona de meus atos e tenho que obedecer aos meus senhores. Quem não tem vontade própria é escravo. E o 13 de maio já vai longe! Mas o destino do negro é mesmo ser escravo. Por isso é que sempre acabamos nos cortiços ou nas sarjetas”. 

Carolina relatava nos diários seu árduo cotidiano na cidade grande, de catadora de papéis e moradora da favela do Canindé.

Casa de alvenaria

Foi no dia 24 de dezembro, de 1960, que Carolina comprou uma casa de alvenaria em Santana, um bairro de classe média na Zona Norte da cidade de São Paulo, depois de morar durante 23 anos num barraco na favela do Canindé. Em 1963, após lançar seu romance “Pedaços da fome”, na Galeria Prestes Maia, em São Paulo e “Provérbios”, de forma independente, no começo de dezembro, Carolina muda-se com os filhos para o bairro de Parelheiros, uma zona rural de São Paulo à época. A mudança foi em função dos contínuos desentendimentos com seus editores, bem como das dificuldades enfrentadas para manter-se à vida no bairro de Santana. Muda-se para um sítio, onde é praticamente esquecida pelo mercado editorial, apesar de algumas tentativas de voltar à cena literária. Passando boa parte de seu tempo sozinha, parou de receber pagamentos de direitos autorais pelos livros e plantava milho e hortaliças. Tinha tão pouco dinheiro que ela e seus filhos voltaram a catar papéis e garrafas para vender. Contudo, usava o dinheiro de catadora para comprar refrigerantes e bilhetes de cinema. De tempos em tempos, entregava, para serem vendidos num mercado local os abacates, bananas e mandiocas que produzia.

Além das salas expositivas no IMS, as obras estavam no térreo, no elevador, no quinto andar e fora do prédio numa empena (fachada) de um edifício no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação.Foto:Jornal Pires Rural

Painel

A exposição do IMS Paulista, “Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros” é dedicada à trajetória e à produção literária da autora mineira, protagonista importante da história do Brasil, tem um papel particularmente significativo para a história da população negra brasileira. A exposição apresenta a autora como uma intérprete imprescindível para compreender o país.

Está organizada na estrutura textual e visual da letra da escritora, de forma literal e figurada, apresentando o texto tal qual aparece nos originais. O que significou trabalhá-los diretamente em sua versão em letra cursiva, evitando ao máximo empregar os livros publicados que, de forma geral, sofreram alterações e se distanciam dos manuscritos. “Pedaços da fome”, seu único romance até agora publicado, tinha como título original “A felizarda” — alteração feita a contragosto da autora, por evidente interesse comercial em explorar a imagem da ‘escritora da fome’, mesmo quando Carolina escrevia sobre outros assuntos. 

A personagem criada pela imprensa da ‘escritora favelada’ se sobrepôs à própria escritora, eclipsando o fato de Carolina ter escrito poemas, romances, contos, crônicas, diários, peças de teatro, textos memorialísticos e letras de música. A mostra resultou numa interpretação de sua obra moldada por uma parte de sua biografia, os cerca de 15 anos que viveu na favela do Canindé, em São Paulo. Um tempo e espaço que, isolados, não dão conta da complexidade de sua produção literária e artística.

Dividida em 16 núcleos, a exposição reuniu excertos, livros, cadernos manuscritos, fotografias, periódicos, vídeos e documentários, em diálogo com obras de 69 artistas visuais brasileiros/as, realizadas entre 1951 e 2021.

Além das salas expositivas no IMS, as obras estavam no térreo, no elevador, no quinto andar e fora do prédio numa empena (fachada) de um edifício no cruzamento da avenida Paulista com a rua da Consolação.

Carolina foi uma escritora profícua, uma multiartista, que estabeleceu uma tradição estética e literária de alcance internacional, com reverberações no tempo presente. Uma mulher negra que, apesar de todas as adversidades estruturais e materiais, foi protagonista de sua própria história. E, a partir dela, reescreveu a história de todo um país.

“Carolina Maria de Jesus: Um Brasil para os brasileiros”, pode ser vista até 27 de março, com entrada gratuita – IMS Paulista, Av. Paulista, 2424 – Bela Vista, São Paulo – SP, 01310-300.

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