Entrevista com Ingryd Lo Tierzo Silva, 21 anos, estudante do terceiro ano do curso de Administração Pública, da Unicamp, Limeira. Ela é vice-presidente do Coletivo Conexão Preta, juntamente com Laís Ameirelles, presidente. Quando ingressou na Unicamp, a instituição não tinha disponibilizado o sistema de cotas – implementado em 2019. A Universidade de Brasília, UNB, foi a primeira universidade federal a adotar cotas raciais em seus processos seletivos de ingresso na graduação, em 2003. O Coletivo Conexão Preta, da Unicamp, é formado por pessoas negras, todos, alunos da comunidade da Unicamp mas, isso não é um critério para ser integrante.

Jornal Pires Rural: Como surgiu o Coletivo Conexão Preta?

Ingryd Lo Tierzo Silva: Em setembro de 2018, aconteceu a palestra com o tema: “Educação e racismo: pensando a lei 10.639 de 2003″. Essa lei estabelece a obrigatoriedade do ensino de “história e cultura afro-brasileira” dentro das disciplinas que já fazem parte das grades curriculares dos ensinos fundamental e médio, também estabelece o dia 20 de novembro como o dia da consciência negra no calendário escolar. 

No final da palestra, coincidentemente todas as pessoas que foram falar com as palestrantes eram pessoas negras e nunca tinham se visto, nunca tinham conversado dentro da faculdade. Aí  a profa. Joyce Dias e Yasmin Gabrielle, fizeram um slam de fechamento da palestra disseram ao grupões alunos: “isso aqui é uma potência e é uma oportunidade de vocês começarem a fazer algo inicialmente na faculdade. Por que vocês não criam um coletivo, um grupo?” A partir daí a gente se olhou e falou: é verdade! 

Jornal Pires Rural: Qual é o objetivo do Conexão Preta? 

Ingryd Lo Tierzo Silva: A escolha do nome Conexão Preta se deu porque a gente percebia que as pessoas negras presentes no campus da Unicamp de Limeira, elas não eram conectadas. A política de cotas tem influenciado positivamente pra isso. No ano que eu entrei eu me lembro que tinha eu e mais cinco pessoas negras, no máximo, na minha sala de aula e, hoje, esse número é maior, embora não seja maioria. 

O Coletivo foi criado para conectar as pessoas negras da faculdade pensando que elas não se conversavam, pensando que elas não eram próximas, colegas. Esse pessoal começou se encontrar, criou um grupo no WhatsApp, foi criado o logo do Conexão Preta pela Rayane Bortolin. Então, a gente pediu a ajuda da professora Juliana Arruda Leite sobre o tema racismo na literatura com a palestrante Joice Dias. A professora gentilmente cedeu o último dia de aula dela. Foi quando o Conexão Preta se apresentou na sala de aula e foi quando eu entrei. Eu falei: meu Deus! Eu preciso fazer parte disso. Foi quando o Conexão começou a realmente ser um grupo coletivo com várias pessoas manifestando interesse por fazer parte, perguntando “o que é que eu posso fazer?” 

Jornal Pires Rural: Coletivo é algo que teoricamente funciona de forma horizontal, sem hierarquia. Como é possível delegar funções dentro de um coletivo?

Ingryd Lo Tierzo Silva: O Conexão Preta surgiu da ideia de não haver hierarquia dentro do grupo, mas a gente queria ser uma organização legítima que pudesse ter os direitos que as outras organizações dentro da Faculdade da Unicamp tem. Como por exemplo, a organização Trote e Cidadania que é uma organização social, o Sinergia, o Enactus, são organizações tradicionais e tem alguns direitos e podem receber um repasse anual da Unicamp. E como a gente queria se adequar, a gente percebeu que teríamos que ter, por exemplo, uma diretoria, um diretor de área, porque trabalhamos com a questão da coletividade. Para as coisas acontecerem tem que ter uma organização (formal). 

É complexo falar sobre a permanência dos alunos no Coletivo porque a população negra é muito vasta e muito diversa então, sempre terá aquelas pessoas que, de fato, vão entrar e querem fazer parte e querem fazer acontecer, só que a vida é muito dinâmica e muito ampla, e ela pode se afastar. A pessoa não precisa estar dentro do Coletivo para ele funcionar porque temos as pessoas-chave que atuam trabalhando. 

Jornal Pires Rural: Quais são as atividades para a semana da Consciência Negra?

Ingryd Lo Tierzo Silva: Fazemos parte da Unicamp Afro, realizado pelo Cader – Comissão Assessora de Diversidade Etnico-Racial – órgão responsável pela questão de trabalhar e reivindicar os direitos da população negra e indígena dentro da universidade. Os eventos estão acontecendo de forma remota pelo caderunicamp no YouTube, Unicamp Afro 2020, com diversas palestras, rodas de conversa. 

A gente pensa em fazer atividades que chame a atenção das pessoas que estão no grupo através de atividades internas não só para as pessoas do coletivo mas, para pessoas negras. Para que a gente consiga cada vez mais entender as próprias questões que foram tão retiradas da gente historicamente. Passamos séculos sem aprender de fato na escola o que aconteceu com o negro. A educação brasileira não avançou pra trazer a disseminação da verdadeira história do Brasil para a sala de aula. É muito difícil eu falar como eu vejo isso avançando na educação brasileira uma vez que legalmente a gente já tem leis. Já temos lei para ensinar o conteúdo afro brasileiro. Temos uma lei pra ensinar o conteúdo indígena também. Isso é aplicado? Não. Isso não chega nas escolas. É uma questão política porque quem é que vai fazer isso funcionar, concorda com isso? É muito complexo eu falar em funcionar uma lei que vai combater o racismo estrutural a longo prazo quando quem está aplicando essa lei e quem está supervisionando essa lei são pessoas racistas. 

Jornal Pires Rural: O que você pensa sobre a lei de cotas raciais?

Ingryd Lo Tierzo Silva: A política de cotas é uma grande evolução. Eu acredito que as pessoas negras que conseguem chegar na universidade tem uma evolução enorme. Depois que foi implementada, os coletivos negros começaram surgir nas universidades e isso não é por acaso. Esse buraco é muito mais embaixo, porque quem são as pessoas negras que conseguem chegar na universidade? Existem pessoas negras que há muito tempo lutam por essa igualdade e acredito que estar no movimento negro, dentro da universidade, é lutar por essa igualdade só que ainda assim é muito raso porque a gente não está lá no momento da implementação, no alto escalão. 

As pessoas que governam o Brasil ainda são brancas, ainda são racistas. 

É muito difícil reivindicar políticas públicas e efetivá-las de fato, quando a gente está sendo constantemente sabotados pra que elas não existam, a política de cotas é constantemente sabotada. Por isso que existe a comissão de averiguação pra garantir a manutenção da política de cotas. O nosso povo foi condicionado a não se posicionar ao que se refere a ele mesmo, porque o nosso lugar é constantemente negado. As pessoas dizem o que a gente é, sem nos dar oportunidade da gente pensar quem a gente é, por nós mesmos. 

Magdiel, ingryd, Laura, Samara, Amanda, Thiago, Nyahn
Magdiel, ingryd, Laura, Samara, Amanda, Thiago, Nyahn

Jornal Pires Rural: Em que momento o Coletivo está? 

Ingryd Lo Tierzo Silva: Não poderíamos imaginar esse momento. O ano de 2019 foi um ano muito legal. O coletivo hoje está funcionando, de pé e pra frente, graças a essa divisão de tarefas e separação que a gente fez das pessoas que queriam fazer acontecer.

Jornal Pires Rural: O Conexão Preta tem conexão com outros coletivos? 

Ingryd Lo Tierzo Silva: Fomos convidados para dar palestra na faculdade da Bahia, UFBA, fora de faculdade, temos conexão com o Coletivo Margem Cultural de Campinas. Coletivamente vamos lutar sobre as nossas questões, a partir do racismo que a gente sofre dentro dessa instituição. A gente sofre racismo dos professores, dos diretores, de todos os lados porque o racismo está dentro das entranhas de todas as instituições do Brasil. De forma coletiva nós vamos lutar e vamos focar consequentemente na questão da universidade. Não significa que pessoas não possam entrar em contato e não possam se vincular a outros coletivos de fora da universidade. 

A violência que outros coletivos sofrem vem de outros lados, de forma cotidiana e, do Estado. A partir do momento que o Estado não olha para os artistas independentes, que em sua maioria são negros ou para os empreendedores independentes na maioria negros. Cada coletivo tem uma característica diferente. 

Jornal Pires Rural: Fazer parte da diretoria do Coletivo Conexão Preta foi um divisor de águas pra você? 

Ingryd Lo Tierzo Silva: Sim, com certeza. Não só pra mim e isso talvez nem tenha a ver em ter família negra ou não. Independente da escola em que você estuda seja ela pública ou privada, a diferença está na quantidade de pessoas negras que tem na sala de aula. Mas a violência está presente em todos os espaços, inclusive dentro de casa, tendo a família negra ou não. As pessoas negras também podem incorporar o racismo.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *